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Desmatar floresta para subsistência não é crime ambiental

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Advogado Ambiental
49222/SC
Fundador do escritório Farenzena & Franco. Advogado especialista em Direito Ambiental pela UFPR, pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal e idealizador do AdvLabs.

Quando há a prática do crime ambiental de desmatamento em terras de domínio público, aí incluídas os assentamentos geridos pelo INCRA na região da Amazônia Legal, o Ministério Público Federal oferece denúncia contra o acusado com base no tipo penal previsto no art. 50-A, da Lei 9.605/98:

Art. 50-A. Desmatar, explorar economicamente ou degradar floresta, plantada ou nativa, em terras de domínio público ou devolutas, sem autorização do órgão competente:

Pena – reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa.

§ 1º Não é crime a conduta praticada quando necessária à subsistência imediata pessoal do agente ou de sua família.

§ 2º Se a área explorada for superior a 1.000 ha (mil hectares), a pena será aumentada de 1 (um) ano por milhar de hectar.

Mas ainda que conste da peça acusatória que o denunciado degradou mata nativa em assentamento rural, explorando floresta no bioma amazônico, a pretensão punitiva estatal deduzida na denúncia pode ser revertida para absolver o réu.

Desmatamento realizado para sustento do réu e de sua família

Conforme visto no art. 50-A da Lei 9.605/98 acima colaciona, cabe destacar que em seu §1º, esse dispositivo legal dispõe que “não é crime a conduta praticada quando necessária à subsistência imediata pessoal do agente ou de sua família.”

Assim, ainda que a materialidade e a autoria do delito previsto no art. 50-A, da Lei 9.065/1998 estejam devidamente evidenciadas, por vezes através de auto de infração ambiental, relatórios de fiscalização ou outros documentos, se ficar comprovado que o réu desmatou a área assentada para cultura ao seu sustento, sua absolvição será de rigor.

Diante desse contexto, embora sejam demonstradas a autoria e a materialidade delitivas, o acusado deve ser absolvido decorrente da aplicação da excludente de ilicitude prevista no art. 50-A, § 1º, da Lei n. 9.605/98, porquanto, nos termos do referido dispositivo legal, “não é crime a conduta praticada quando necessária à subsistência imediata pessoal do agente ou de sua família“.

Absolvição do crime ambiental de desmatamento

Em muitas ações penais por crime ambiental, em que pese a conduta praticada pelo denunciado subsuma-se, formalmente, ao tipo penal previsto em lei, a adequação da conduta do agente ao modelo abstrato previsto em lei penal faz surgir apenas a tipicidade formal.

Isso pode ocorrer nos casos em que as alegações do réu são no sentido de que o desmatamento ocorreu em razão de estado de necessidade, eis que praticou a ação ilícita impulsionado por absoluta necessidade de prover a subsistência sua e de sua família.

Essa alegação pode expressar uma defesa genérica e inconsistente de pessoas culpadas que se veem processadas e sem outra alegação a amparar-lhes a conduta. Mas pode indicar, sim, uma alegação substantiva e importante.

Em alguns casos, o próprio Ministério Público reconhece o estado de necessidade e pede, inclusive, o arquivamento prévio, sem oferecer denúncia; ou solicitado a absolvição em alegações finais, como no caso dos autos, sob o mesmo fundamento.

Em outros, o próprio fiscal da administração ambiental reconhece que sua autuação foi indevida, e que somente o fez para não ser tachado de prevaricador ou parcial.

Desmatamento inferior ao módulo fiscal

O Estatuto da Terra trouxe o conceito de módulo fiscal, compreendido como área mínima que, em cada região do Brasil, se revela como necessária para a subsistência de uma família.

Desse modo, se o desmate da área total não alcançar o módulo fiscal, resta demonstrado que o desmatamento está albergado pela inexigibilidade de conduta diversa e pelo estado de necessidade.

Com efeito, a Administração Pública não pode justificar seus atos de fiscalização e imposição de sanções apenas com base na constatação de que houve desmate. Tampouco o Órgão Ministerial pode justificar uma denúncia embasada no mesmo motivo.

Deve fazer mais. Deve trazer razões que mostrem que o posseiro de área em unidade de conservação ou o assentado no projeto de assentamento têm condições de dali extrair seu sustento com obediência à legislação.

Deve, além disso, mostrar que houve treinamento, esclarecimento de outras atividades econômicas rentáveis, que houve fomento, financiamento, crédito, assistência técnica etc.

Nesse contexto é lícito se exigir de um cidadão o cumprimento das regras. Fora disso, tem-se a criminalização de uma conduta para a qual o Estado colaborou para criá-la, não cabendo ao Judiciário, à Polícia, ao Ministério Público, o endosso dessa distorção e limitar-se ao processo penal ou cível, à prisão, à mera repressão.

Desmate para subsistência não é crime ambiental

A própria legislação ambiental descriminaliza a conduta do desmate quando necessária à subsistência do agente e de sua família (art. 50-A, §1º, da Lei 9.605/98).

Tal fato demonstra que o próprio legislador não pretendia se ocupar de situações em que o dano ambiental foi praticado para salvaguardar a sobrevivência do infrator.

Embora a conduta seja formalmente típica, atenta contra o princípio da dignidade da pessoa humana punir uma pessoa que pratica o desmatamento para sustento próprio e de sua família.

A par disso, frise-se que qualquer pessoa que vive em local como aquele em que o acusado mora e possuísse as mesmas condições, tendo que sustentar a família, adotaria a mesma postura, do que se extrai a inexigibilidade de conduta diversa.

O que diz a jurisprudência

No sentido aqui defendido, a jurisprudência reconhece que quando o réu desmata para sustento próprio, o crime ambiental é atípico:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME AMBIENTAL. (ARTS. 38 E 40 DA Lei 9.605/98) AUTORIA E MATERIALIDADE. DEMONSTRADAS. DOLO. NÃO CARACTERIZADO. DESMATAMENTO PARA SOBREVIVÊNCIA. EXCLUDENTE DE ILICITUDE ART. 50. § 1º DA LEI 9.605/98. ABSOLVIÇÃO. MANTIDA (ART. 386, INCISO VI, CODIGO DE PROCESSO PENAL C/C ART. 23, INCISO I, CODIGO PENAL E ART. 50-A, § 1º, DA LEI N. 9.605/98). APELAÇÃO DESPROVIDA.

1. Autoria e materialidade delitivas restaram plenamente demonstradas.

2. Embora tenham sido demonstradas nos autos a autoria e a materialidade delitivas, deve ser mantida por seus próprios fundamentos a sentença que absolveu o acusado, decorrente da aplicação da excludente de ilicitude prevista no art. 50, § 1º, da Lei n. 9.605/98, porquanto, nos termos do referido dispositivo legal, “não é crime a conduta praticada quando necessária à subsistência imediata pessoal do agente ou de sua família“.

3. Apelação desprovida. (ACR n. 11608-65.2011.4.01.3000/AC, rel. Des. Fed. HILTON QUEIROZ, 4ª Turma, DJe 24/03/2015).

PENAL. PROCESSO PENAL. DESMATAMENTO. ÁREA DE FLORESTA OU MATA. ART. 50-A DA LEI 9.605/98. MATERIALIDADE E AUTORIA. ESTADO DE NECESSIDADE CONFIGURADO. ABSOLVIÇÃO.

1. Autoria e materialidade demonstradas nos autos.

2. Embora o Parquet alegue que não haveria como caracterizar o estado de necessidade em razão da grande extensão da área desmatada, da leitura dos documentos constantes do processo extrai-se que o réu efetuou o desmatamento com o único fim de garantir sua sobrevivência e de sua família. O dolo de cometer o crime previsto no art. 50-A da Lei 9.605/98 não restou caracterizado.

3. A conduta do acusado subsume-se ao estado de necessidade, excludente de antijuridicidade prevista no artigo 23, inciso I, e artigo 24, ambos do Código Penal, ficando este claramente evidenciado nas declarações ofertadas pelo réu.

4. As conclusões do laudo pericial (fls 62/74) são claras e confirmam, categoricamente, que, “não foi constatada nenhuma Área de Preservação Permanente (APP) afetada pelo desflorestamento que circunscreve o polígono em questão”, o que afasta o caráter comercial do desmatamento e evidencia que a intenção do denunciado era, tão somente, sua subsistência.

5. Apelação não provida. (ACR n. 1855-84.2011.4.01.3000/AC, rel. Juiz Federal JOSÉ ALEXANDRE FRANCO (Convocado), 3ª Turma, DJe 24/07/2012).

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